terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Capítulo 2 [2ª parte]
Apareceu sem pedir licença, mas rasgou os remendos onde o coração vivia, para o abraçar tão doce e suavemente. Quando estas mediações aparecem, nunca se dá conta até ser tarde de mais, até já se estar completamente despido de vergonhas e adultez do mundo.

Vinda do nada, uma menina voa na sua direcção e embate mesmo de frente com Duarte. Ambos sem estar à espera, perdem o equilíbrio e caem um por cima do outro. O Duarte, que entretanto tinha colocado os braços à sua volta para ela não embater no chão directamente, soltou-os um pouco para ver como estava a menina. Não tinha mais que dez anos, com certeza, aquela princesa, morena, de olhos de azeitona e cabelo escuro, liso, abaixo dos ombros. Ajudou-a a levantar-se, e a menina sorria como ele nunca tinha visto alguém sorrir. Ela olhava para cima, tanta era a diferença de alturas. Abriu os olhos de modo que o Duarte conseguia distinguir todo o branco à volta daquele castanho tão envolvente, e cada vez mais abria o sorriso.
- Olá! – Disse a menina, sem se preocupar com a cara de parvo que o Duarte estava a fazer, à procura da Catarina e do Gonçalo, que entretanto haviam desaparecido, ou ele se teria afastado do local quando vira Fernando.
- Errr… Olá – Respondeu Duarte atrapalhado por uma criança ter tão simplesmente dito “olá” sem sequer ter disparado num choro.
- Como te chamas? – continuava ela.
- Duarte…
Ouvia agora aquilo que pela certa seria o nome da menina, aquela princesa que tinha embatido contra ele, e que emanava tanta luz no sorriso, já que ouvia um “Bia, onde estás? Beatriz?”.
- Está bem! Adeus Duarte! – Disse, por fim, a Bia, abrindo mais uma vez o seu sorriso, que o Duarte já não se cansava de voltar a ver.
- Adeus… Adeus. – Respondeu, ainda com cara de quem não tinha “estofo” para lidar com crianças.

Parecia surreal, pensava agora o Duarte, mas como raio aquela menina, tão simples, tão tudo, tinha aparecido? Parecia um raio de luz que o Duarte já não se lembrava de ter visto ou sentido alguma vez. Mas obviamente, pensava agora melhor, ainda que numa lembrança antiga, longínqua, sim, conhecia aquele sentimento de algum lado. Esbatido no tempo e no espaço, o Duarte parecia prender aquele sentimento, tão puro e tão simples…
Quando se virou, subitamente, viu a Catarina.
- Onde raio te meteste? – Perguntou o Duarte ainda meio aluado com o que se tinha passado.
- Estava a falar com o Gonçalo, Duarte, não saímos daqui!
- Olha, esquece, pronto, não vamos estar a discutir. Aconteceu uma coisa incrível!
- Aconteceu…? – Pergunta a Catarina, já a ficar confusa…
- Sim! Agora mesmo! Estava aqui a olhar para o outro lado da estrada e vi o Fernando…
- …E puseste-te logo a pensar coisas, como o costume, estou a ver… - atalhou logo a amiga.
- Não! Quer dizer, sim, mas não foi isso que aconteceu. Estava a olhar para ele, e veio uma miudinha e espetou-se contra mim!
- Uma miudinha?
- Sim! Mesmo querida, a sério, não a viste? Ela vinha disparada a correr! Bem, adiante, nem sei de que lado apareceu, caímos os dois, e ela limitou-se a sorrir…! Fogo, a sério, fiquei parvo. Sabes bem como tenho problemas com isto… a vergonha que tenho, não tenho jeitinho nenhum para crianças! Olha, não sei, senti-me bem, sabes? Parecia que alguma coisa dentro de mim estava diferente…
- E se calhar estava, já pensaste nisso? Se calhar alguma coisa dentro de ti precisa de nascer… Mas para algo nascer, precisam de morrer algumas coisas que ainda tens aí dentro que estão tão entranhadas que nem dás conta…
A Catarina conhecia muito bem o Duarte, mas ele não se deixou apanhar pelos argumentos, tinha de escapar àquela realidade de algum modo.
- Estás a falar de quê, exactamente? – perguntou, já a preparar a sua defesa, mas sabia perfeitamente qual seria a resposta.
- Fernando… - retorquiu a Catarina – não é óbvio?
- Óbvio ou não… não acho. O Fernando não me é indiferente, mas fez-me o que fez pelas costas, tu sabes! Ele é assim, não sabe ser amigo sem querer alguma coisa, e querer ser melhor que eu!
- Duarte – continuava, pacientemente – assim estás tu a querer ser melhor que ele, e não deves ser assim. Tens de ser o melhor de ti a cada dia, não tens de ser melhor que ninguém, vales por ti…! Estas a ser teimoso e nem deixas espaço para o teu coração ver mais nada!
- Não estou nada!
- Vês…? Se calhar estás… Por favor, meu miúdo, deixa a o senhor Medo e a dona Angústia que vivem no teu coração. Deixa-os, sabes como sabe bem, experimentaste-o hoje quando aquela pequenina veio contra ti! Duarte, tudo isso que está no teu coração é muito bonito… Mas vives preso dentro de ti próprio, e não podes. É o melhor para ti, e acredita que quanto mais te sentires assim livre, que foi o sentimento que experimentaste ainda que por poucos momentos, mais estarás também feliz… o que aconteceu hoje, foste tu quem decidiu lembrar-se do que é ser feliz, mas agora é preciso que continues a querer, meu querido. Não podes separar o que crês do que queres, se não o separares, vais ser muito mais feliz, acredita.
- Pois, deve ser isso – comentou o Duarte, nada convencido – podemos ir comprar a prenda? Não me apetece nada faze-lo amanhã, e preciso da tua ajuda.
Mas a semente estava plantada, pensou a Catarina. Sabia que o Duarte não ia compreender à primeira, que ia lutar, e lutar até sangrar dentro de si próprio sem conclusões. Sim, sabia-o, porque o conhecia muito bem, mas sabia que o coração dele era bom e ia acabar por escolher o melhor, escolher ser feliz. Agora dependia dele. E da Beatriz.
 
por David a 15:23 | Permalink |


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