sábado, 20 de dezembro de 2008
Capítulo 5
Era de manhã cedo quando o pai do Duarte irrompe pelo quarto adentro, cantarolando o dia tão bonito que fazia lá fora, numa ópera um tanto ou quanto desconhecida. Era verdade que o Duarte, de manhã, estremunhado pelo “furacão dos bons-dias” – como lhe chamava – não pensava com toda a clareza, mas aquela melodia parecia pertencer, pelo modo como ecoava, a uma manada de elefantes a limar os dentes de marfim. O “furacão” continuava a sua pregação sobre “estar de férias não significa dormir até ao meio-dia”, mas aquele dia era diferente. Aquele filho, deitado ainda na cama, e de olhos cerrados pela luz do dia que entrara no quarto depois de a persiana ter sido aberta, tinha um sorriso estampado nos lábios. Aquele filho, o Duarte, estava hoje decidido a ser, nesse dia, o seu próprio melhor amigo. Saltavam-lhe frases que se tinha habituado a ouvir, as mesmas que tão poucas vezes encontravam um caminho no coração que fosse o caminho de “tomar como atitude”… Lembrava-se da que um grande amigo uma vez tinha dito: “A cada dia podemos escolher entre ser o nosso melhor amigo, ou o nosso maior carrasco”. Hoje seria diferente do que ele próprio se tinha habituado. Hoje, deixaria de curtir a depressão. Porque parecia que se tinha habituado a viver lá, e mudar parecia tão menos confortável…
Tinha passado muito tempo desde a última vez que vira Beatriz. Nem podia, tinha-a encontrado – aquela criança que ele próprio era e tanto se esquecera – dentro do seu coração, de tal maneira que aquela figura perfeita, de princesa, simples e sempre de sorriso aberto, deixara de ser necessária ao coração para abrir os olhos do mesmo corpo a que pertencia. Deixara de conseguir ver a Bia porque os olhos do Duarte haviam deixado de precisar de procurar fora do corpo o que o coração tinha agora dentro – a Criança.

Levantou-se, tomou banho e vestiu-se. Saiu. Foi ter com a Catarina. Sempre partilhara tudo com ela, e isto não seria excepção. Tinha uma página para virar, e era uma página que se tinha tornado bem pesada, no livro da sua vida. Os últimos meses tinham sido um verdadeiro inferno.
 
por David a 18:00 | Permalink | 0 comentário(s)
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
Capítulo 4
“Catarina,
Tenho uma coisa para te contar. Apetecia-me poder dizer-te tudo isto, mas estamos longe, e por telemóvel não seria a mesma coisa, por isso decidi escrever-te. Sabes que quando algo é importante tenho sempre tendência para escrever.
Foi com a Bia. Estive com ela outra vez depois de teres ido embora. Ainda estava nas escadas onde te deixei, fechei os olhos por uns momentos a pensar naquilo que tinha acontecido, e depois, lá estava ela… Tu não tens noção, ela deixou-me, mais uma vez de boca aberta… Como é que eu vou explicar? Ela faz-me sentir tão estupidamente: por um lado, tão mal por não a compreender como se calhar devia; mas por outro, tão feliz de a ter ali, disponível, e sempre com um sorriso que me mata, que não deixa de pôr em causa tudo o que o meu coração pretende esconder do mundo, que normalmente são sorrisos, sentimentos bons. É como se eu estivesse tão habituado a passear nos caminhos da vida, que conheço tantos, e os explorasse mais e mais; e então, aparece uma face escondida (não por querer, mas porque algum dia deixei de permitir que se mostrasse à vida) que me pede insistentemente que deixe que seja ela a conduzir… e então leva-me por outros caminhos, caminhos que nunca pensei que pudessem (ainda) existir, porque, vejo depois, eles já faziam parte de mim…! Essa parte do meu coração tem a imagem da Bia, pequenina, pura, sorridente… E então sinto-me feliz… Feliz por uma criança voltar a mostrar que há outros caminhos que uma pessoa se não vê é porque se esqueceu do que é ser criança… e eu acho que nos tornamos autênticos velhos quando deixamos de ser crianças…
Ficas aqui com as minhas dissertações… Quando pudermos, falamos melhor sobre isto, está bem? Um Beijinho grande,
Duarte”

A Catarina tinha acabado de ler as palavras que o Duarte escrevera e lhe entregara nesse momento, noite do dia seguinte aos acontecimentos. Ele tinha ficado em silêncio enquanto a amiga lia a carta, enquanto mais uma vez pensava no assunto, e no que tinha escrito.
Depois de uns momentos em que a Catarina esteve em silêncio, como que a conversar melhor com o texto, concluiu.
- Sabes, Duarte… Acho que te levas demasiado a sério.
O Duarte não compreendeu, ou não quis compreender, como a Catarina já estava à espera. Explicou:
- Passas os dias a pensar de mais, Duarte! Tomas as tuas razões, por muito boas que sejam, universais, não susceptíveis de correcção… Tens de aprender a ser mais relaxado, a ouvir mais o que os outros te dizem, mesmo que seja parvoíce! Pela simples razão que provoca encontro, relação com essas pessoas. Porque mesmo que seja parvoíce, tu estiveste disponível para as ouvir, e isso significa muito. E vais aprender muito mais do que esperas, se ouvires mais… Não leves as tuas próprias palavras como leis, porque normalmente acabam por nos tirar liberdade, e abertura às coisas novas. Não sei o que te diga mais, meu querido…
E não disse… Ficaram ambos onde estavam, num silêncio pleno de sentido, enriquecedor, a olhar o céu azul-marinho daquela noite.
 
por David a 04:32 | Permalink | 0 comentário(s)
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Capítulo 3
O Duarte encontrava-se de novo nas escadas do salão paroquial. Tinha acabado de deixar a Catarina, e deitara-se no patamar superior das escadas, perto da porta. Fechou os olhos. A realidade não seria o que a Catarina pensara, com certeza. Mas, pensou, tinha-se sentido tão bem… e a verdade é que o adjectivo que a Catarina usara – a Liberdade – fizera todo o sentido, tinha caído que nem uma luva em toda a situação. Via agora que por causa dessa Beatriz tinha esquecido imediatamente o Fernando, até ter voltado a falar nele quando contou tudo à Catarina. E sabia que quando se punha a lembrar dele, era um ciclo vicioso. Mas porque é que seria tão difícil?

Abriu os olhos.
- Olá! – A voz já era inconfundível, e a silhueta daquela menina morena fazia-se contornar na claridade que agora o Sol dispunha ao mundo.
- Beatriz! – O Duarte tinha já um turbilhão de perguntas, mas ela não o deixou.
- Como sabes o meu nome?
- Ouvi aquilo que parecia a tua mãe a chamar-te…
- Ah, a mamã. Foi ela, sim. Ela está sempre comigo – Dizia sorrindo.
- E agora por aqui, pelos vistos…
- Hmm-hmm… - respondia sem grande interesse, a Beatriz. Parecia ocupada a ver uma borboleta que por ali passava, e sorria-lhe.
- Tenho montes de perguntas, mas não sei se as vais compreender… - Começou o Duarte, a medo.
Mas a Bia não parecia preocupada em responder às perguntas do Duarte:
- As borboletas são bonitas. Olha, esta é cor-de-laranja. Já viste borboletas hoje?
- Hmm não… Era suposto? – pergunta o Duarte, confuso com a pergunta.
- Não, mas são bonitas, as borboletas.
O Duarte já não estava a gostar muito da conversa, não achava que ver borboletas fosse importante, quando tinha tantas perguntas a fazer. E estava atónito, parecia loucura, uma miúda, que parecia uma princesa, a quem tanto precisava de perguntar coisas que não deixara pessoas da sua idade sequer pôr em causa.
- Quantos anos tens? – Pergunta, tentando recomeçar a conversa.
- Sou uma criança pequenina… - respondeu, ainda a olhar para a borboleta.
- Vais responder-me às minhas perguntas? – pergunta o Duarte começando a ficar sem paciência – Ou vais continuar a olhar para a borboleta?
A Bia, sem nunca desviar o olhar da borboleta, abre o seu sorriso, deita-se ao lado do Duarte, de barriga para baixo, e diz:
- Os adultos são muito complicados, e nós temos de estar sempre a explicar as coisas importantes.
- Achas que sou um adulto? – pergunta o Duarte, sentindo-se velho.
- Estás a ser complicado…
- Porquê?
- Porque não estás a olhar para as borboletas…
- Mas afinal o que têm as borboletas?
- São bonitas.
O Duarte começava a achar a Beatriz muito especial. Tudo nela era verdadeiro. Apesar de se sentir tão perdido naquele mundo, gostava muito de a ouvir preocupar-se com nada mais do que aquilo que ali estava, aquela borboleta esvoaçando para mostrar ao mundo as suas asas cor-de-laranja. A Bia continuava assim, a sorrir enquanto balançava as pernas alternadamente, e via a borboleta. Enquanto isso, o Duarte pensava em tudo o que aquilo significaria, em tudo o que estava a sentir. Sentia-se livre, por muito que ainda não compreendesse aquele mundinho da Bia, onde ela parecia sentir-se tão feliz. Talvez nunca tivesse mesmo compreendido a palavra Liberdade nestas últimas vezes que a usara. Sabia toda essa teoria, mas tinha esquecido de como a sentir era tão bom.
Tomou, então uma decisão:
- Bia, queres que apanhe essa borboleta para ti?
Ela olhou-o, sem perceber.
- Para quê? – Perguntou.
- Para ficares com ela. – respondeu calmamente o Duarte.
- Mas se eu ficar com ela, como é que as outras pessoas vão poder vê-la? Ela é tão bonita…
- Está bem, mas não a queres?
- Quero que as outras pessoas possam ver que bonita é…
O Duarte não compreendia todo o sentimento de partilha, não de conquista, da Beatriz. Mas os adultos são assim. Sempre preferiram ter as coisas, possui-las para poderem ser donos delas. Só devemos ter as coisas enquanto nos podermos libertar delas. Mas os adultos não sabem fazer isto, vivem presos por tudo o que mais desejas possuir, e não partilhar, quando a partilha é que os faz realmente felizes. E o Duarte tinha-se esquecido de partilhar o seu mundo. Naquele momento, partilhava aquela borboleta, aquele mundo que deixara de ser só da Bia, que o partilhara, e passara a ser dele também. Poderia também mostrá-lo a outros?
- Duarte – continuou a Bia, agora visivelmente querendo chegar mais além –, tu compreendes-me?
- É tudo de mais para mim, Bia… e ainda nem sequer sei como te estou a dizer isto, nem porquê, mas olha, desde que vieste contra mim que me fizeste ver coisas que eu não teria visto sem ti, sabes? Mostraste-me coisas que eu outrora consegui ver, e há já muito que me esqueci… e agora parece tarde, percebes? Parece tão difícil poder voltar a sentir, voltar a ver como tens mostrado que vês…
- Eu não vejo mais do que “coisas”… Não vejo mais do que borboletas…
- E isso é ver tanto… que nem imaginas como faz agora sentido para mim… – disse serenamente o Duarte.
- Sabes? – pergunta a Bia, abrindo o seu enorme sorriso – Eu gosto de ti. Não és parecido com os outros adultos.
- Não? Mas ainda agora disseste que era…
- Mas não és – continua, numa gargalhada envergonhada – és diferente. Os adultos têm sempre coisas “importantes” para fazer, e nunca têm tempo para mim. Tu tens tempo. Se não me percebes, ao menos tens tempo, estás aqui. Não tens coisinhas importantes para fazer. Os adultos nunca têm tempo para nada.
- Fico contente…
- Ficas contente por quê? – perguntou a Beatriz.
- Por achares isso.
- Ah…
- Tanto entusiasmo… Que se passa?
- Preferia que brincasses comigo…
- Eu não sei brincar…
- Sabes sim, queres ver? – olha em volta por uns momentos – Pega a minha mão.
Desceram as escadas, e ela levou-o para a parte debaixo do parapeito de uma das extremidades do parque, que teria, talvez, um metro e meio de altura. Deu a volta, voltou a subir pela rampa e apareceu na parte de cima do parapeito. Foi tudo muito rápido: O Duarte não teve tempo de se preocupar com nada. Quando olhou para ela, a Beatriz tinha-se atirado com os braços em direcção ao seu pescoço. Se não a agarrasse, ela cairia redonda no chão. Não analisou técnicas, não pensou que não sabia, nem que não tinha jeito para crianças. Segurou-a, e pronto. Quando sentiu os seus bracinhos à volta do seu pescoço, sorriu. E serenou. Não tardou a que ela se separou do Duarte, também visivelmente a sorrir, e pôs-se a fugir dele, enquanto ele corria gora para a apanhar, e agarra-la, abraça-la mais ama vez. Brincaram durante um tempo que o Duarte já não sabia possível de se viver. Não foi muito tempo, foi o suficiente para rasgar o coração ao meio. Rasgar, a única maneira de o abrir sem o risco de ele se voltar a fechar, Rasgar, escancarar as velhas cascas que cobriam a superfície e prendiam tudo o que lá havia dentro, deixando por vezes escapar pequenas lascas de sentimentos para enganar a “razão”. Foi uma explosão que veio de dentro. Quando as explosões vêm de fora tantas vezes só nos levam lascas das crostas que nos cobrem. Mas quando vêm de dentro… aí sim, quando as explosões vêm de dentro, levam tudo! E ainda bem, este Amor tão preso nunca se deu bem assim… e o Amor é assim, vence sempre. E quando chega a estes cúmulos, normalmente é com estas explosões drásticas que o coração vence.

- Vou para ao pé da minha mamã – disse, de súbito, a Beatriz.
- Já?
- Sim. Voltas a ver-me?
- Eu não tenho uma hora para voltar – Respondeu o Duarte. Queria tanto voltar a vê-la que não imaginava outra situação possível –, porque ando sempre por aqui…
Não tinha chegado ainda à conclusão que ver a Beatriz dependia dele, não dela…
 
por David a 06:22 | Permalink | 0 comentário(s)
terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Capítulo 2 [2ª parte]
Apareceu sem pedir licença, mas rasgou os remendos onde o coração vivia, para o abraçar tão doce e suavemente. Quando estas mediações aparecem, nunca se dá conta até ser tarde de mais, até já se estar completamente despido de vergonhas e adultez do mundo.

Vinda do nada, uma menina voa na sua direcção e embate mesmo de frente com Duarte. Ambos sem estar à espera, perdem o equilíbrio e caem um por cima do outro. O Duarte, que entretanto tinha colocado os braços à sua volta para ela não embater no chão directamente, soltou-os um pouco para ver como estava a menina. Não tinha mais que dez anos, com certeza, aquela princesa, morena, de olhos de azeitona e cabelo escuro, liso, abaixo dos ombros. Ajudou-a a levantar-se, e a menina sorria como ele nunca tinha visto alguém sorrir. Ela olhava para cima, tanta era a diferença de alturas. Abriu os olhos de modo que o Duarte conseguia distinguir todo o branco à volta daquele castanho tão envolvente, e cada vez mais abria o sorriso.
- Olá! – Disse a menina, sem se preocupar com a cara de parvo que o Duarte estava a fazer, à procura da Catarina e do Gonçalo, que entretanto haviam desaparecido, ou ele se teria afastado do local quando vira Fernando.
- Errr… Olá – Respondeu Duarte atrapalhado por uma criança ter tão simplesmente dito “olá” sem sequer ter disparado num choro.
- Como te chamas? – continuava ela.
- Duarte…
Ouvia agora aquilo que pela certa seria o nome da menina, aquela princesa que tinha embatido contra ele, e que emanava tanta luz no sorriso, já que ouvia um “Bia, onde estás? Beatriz?”.
- Está bem! Adeus Duarte! – Disse, por fim, a Bia, abrindo mais uma vez o seu sorriso, que o Duarte já não se cansava de voltar a ver.
- Adeus… Adeus. – Respondeu, ainda com cara de quem não tinha “estofo” para lidar com crianças.

Parecia surreal, pensava agora o Duarte, mas como raio aquela menina, tão simples, tão tudo, tinha aparecido? Parecia um raio de luz que o Duarte já não se lembrava de ter visto ou sentido alguma vez. Mas obviamente, pensava agora melhor, ainda que numa lembrança antiga, longínqua, sim, conhecia aquele sentimento de algum lado. Esbatido no tempo e no espaço, o Duarte parecia prender aquele sentimento, tão puro e tão simples…
Quando se virou, subitamente, viu a Catarina.
- Onde raio te meteste? – Perguntou o Duarte ainda meio aluado com o que se tinha passado.
- Estava a falar com o Gonçalo, Duarte, não saímos daqui!
- Olha, esquece, pronto, não vamos estar a discutir. Aconteceu uma coisa incrível!
- Aconteceu…? – Pergunta a Catarina, já a ficar confusa…
- Sim! Agora mesmo! Estava aqui a olhar para o outro lado da estrada e vi o Fernando…
- …E puseste-te logo a pensar coisas, como o costume, estou a ver… - atalhou logo a amiga.
- Não! Quer dizer, sim, mas não foi isso que aconteceu. Estava a olhar para ele, e veio uma miudinha e espetou-se contra mim!
- Uma miudinha?
- Sim! Mesmo querida, a sério, não a viste? Ela vinha disparada a correr! Bem, adiante, nem sei de que lado apareceu, caímos os dois, e ela limitou-se a sorrir…! Fogo, a sério, fiquei parvo. Sabes bem como tenho problemas com isto… a vergonha que tenho, não tenho jeitinho nenhum para crianças! Olha, não sei, senti-me bem, sabes? Parecia que alguma coisa dentro de mim estava diferente…
- E se calhar estava, já pensaste nisso? Se calhar alguma coisa dentro de ti precisa de nascer… Mas para algo nascer, precisam de morrer algumas coisas que ainda tens aí dentro que estão tão entranhadas que nem dás conta…
A Catarina conhecia muito bem o Duarte, mas ele não se deixou apanhar pelos argumentos, tinha de escapar àquela realidade de algum modo.
- Estás a falar de quê, exactamente? – perguntou, já a preparar a sua defesa, mas sabia perfeitamente qual seria a resposta.
- Fernando… - retorquiu a Catarina – não é óbvio?
- Óbvio ou não… não acho. O Fernando não me é indiferente, mas fez-me o que fez pelas costas, tu sabes! Ele é assim, não sabe ser amigo sem querer alguma coisa, e querer ser melhor que eu!
- Duarte – continuava, pacientemente – assim estás tu a querer ser melhor que ele, e não deves ser assim. Tens de ser o melhor de ti a cada dia, não tens de ser melhor que ninguém, vales por ti…! Estas a ser teimoso e nem deixas espaço para o teu coração ver mais nada!
- Não estou nada!
- Vês…? Se calhar estás… Por favor, meu miúdo, deixa a o senhor Medo e a dona Angústia que vivem no teu coração. Deixa-os, sabes como sabe bem, experimentaste-o hoje quando aquela pequenina veio contra ti! Duarte, tudo isso que está no teu coração é muito bonito… Mas vives preso dentro de ti próprio, e não podes. É o melhor para ti, e acredita que quanto mais te sentires assim livre, que foi o sentimento que experimentaste ainda que por poucos momentos, mais estarás também feliz… o que aconteceu hoje, foste tu quem decidiu lembrar-se do que é ser feliz, mas agora é preciso que continues a querer, meu querido. Não podes separar o que crês do que queres, se não o separares, vais ser muito mais feliz, acredita.
- Pois, deve ser isso – comentou o Duarte, nada convencido – podemos ir comprar a prenda? Não me apetece nada faze-lo amanhã, e preciso da tua ajuda.
Mas a semente estava plantada, pensou a Catarina. Sabia que o Duarte não ia compreender à primeira, que ia lutar, e lutar até sangrar dentro de si próprio sem conclusões. Sim, sabia-o, porque o conhecia muito bem, mas sabia que o coração dele era bom e ia acabar por escolher o melhor, escolher ser feliz. Agora dependia dele. E da Beatriz.
 
por David a 15:23 | Permalink | 0 comentário(s)
domingo, 14 de dezembro de 2008
Capítulo 2 [1ª parte]
Era sexta-feira à tarde, e o Duarte estava a espera da Catarina nas escadas do salão paroquial, em frente ao parque predilecto dela para estacionar o carro. Era uma tarde com nuvens, mas o sol esforçava-se por mostrar à terra a sua beleza. Chegou.
- Olá! – Cumprimentou ela com o seu jeito de sempre – Vamos?
- Oi… claro que sim – respondeu o Duarte – hoje lanchamos no Varela? Fica a caminho, queria ainda passar na Beta para comprar a prenda para o meu pai…
- A Beta é aquela miúda muito tua amiga onde passas a vida? – Inquiriu, já conhecendo o hábito do Duarte por passar as tardes livres lá pela loja.
- Sim, sim, é ela! – Disse sorrindo de orelha a orelha, pois já sabia que não escapava nada que a Catarina já não soubesse.

Estavam entretidos na conversa do costume, nas bisbilhotices que a Catarina gostava de contar, e ainda nem iam a meio do caminho, quando vêem o Gonçalo.
- Catarina, acho que não vais gostar muito de saber, mas o teu amigo “parvalhão”…
- Quem? O número um ou número dois? – interrompeu logo a Catarina, já alarmada.
- O um – responde numa gargalhada o amigo, já olhando o chão para não se desmanchar a rir quando o Gonçalo o estivesse a ver.
O Gonçalo, “parvalhão número um” para eles, era um ex-namorado da Catarina que muito a tinha feito sofrer. Não obstante, a relação tinha altos e baixos, como que se não se pudessem suportar, nem viver sem pelo menos a amizade um do outro. Nesta altura estariam bem, falavam agora sobre banalidades que fizeram o Duarte tomar atenção a uma outra coisa que se passava do outro lado da estrada. O Duarte era uma pessoa sociável, de quem era muito fácil de gostar, mas ali estava alguém que tinha um dia (ou mais, talvez) quebrado a sua confiança e, apesar de não se achar uma pessoa que guardasse rancor, ali estava uma das situações em que levaria a Catarina a dizer-lhe o contrário, ainda que fosse para com muito poucas pessoas, já que se dava bem com quase toda a gente. O Fernando era quem estava do outro lado da estrada.

Pelo passado de ambos, o Duarte tinha ficado com uma espécie de alergia ao Fernando, pela sua maneira de ser, pelo que um dia já tão confuso e enevoado na sua memória tinha acontecido. Na verdade, já não sabia bem o que tinha contra ele, mas sentir aquela raiva parecia dar-lhe prazer, num sentimento de controlo e poder sobre as coisas e pessoas, porque ele tinha a certeza de ter razão quanto a tudo aquilo que movia tal raiva.

Estava já na espiral de pensamentos do costume, a convencer-se a si próprio de tudo o que a vida se “encarrega de ensinar” (que normalmente coincide com tudo o que de pior o mundo tem). Estava já de coração exaltado, preso por um sentimento que não mudaria nada, nem para nada serviria, a não ser para o atormentar ainda mais a si próprio. Tinha a certeza de ter razão…mas isso nada importava. E o Duarte não queria ver.

E eis que aparece, então, quem se deu ao trabalho de mudar a sua vida.
 
por David a 04:55 | Permalink | 0 comentário(s)
sábado, 13 de dezembro de 2008
Capítulo 1
Traços de Amor
- O Futuro ao virar da página, por Dear Rocha


Batiam as seis horas, de uma tarde fria. O Duarte deambulava pelas ruas vazias de uma cidade escura, naquela altura de inverno, pensando com os seus botões a sua vidinha, as suas pessoas, os seus estudos… num mundo no qual tinha um dia plantado um sinal de “proibido” na porta, num mundo do qual tinha passado, já nem se lembrava bem quando, a dizer “não têm nada a ver com isto”, quando alguém lá batia à porta do coração. Tudo parecia encadear-se de uma forma estranha, tudo parecia estar a conjecturar a perdição de um rapaz. De um lado, sempre educado num clima de protecção que, agora via, o tinha atado de muitas maneiras perante o mundo; por outro, a morte da mãe, tão especial, tão carinhosa, tão sublime, tão simplesmente mãe… Já se lembrava pouco da mãe, às vezes em fotografias, às vezes em situações em que outros se continham para, à sua frente, não terem de confrontar um “a tua falecida mãe costumava…”; ainda outras vezes, quando algum cheiro misteriosamente fazia lembrar a imagem de um rosto tão jovem que a mãe sempre tivera. A morte da mãe tinha sentenciado, ao que parecia, o envelhecimento do seu próprio rosto perante o mundo e perante os outros. Um rosto que a cada dia se ia infestando mais e mais de tudo o que a vidinha do dia-a-dia nos faz perder o gozo: o gozo nas flores, no céu, nas estrelas… o gozo no café, o gozo numa gargalhada, o gozo de viver. Quando se deu conta, já os dias o viviam a ele, em vez de ser ele a viver os dias! Mas quando estamos atados e de coração cego, tantas vezes isso não interessa para nada… Esquecemo-nos, ou talvez simplesmente não queiramos ver as coisas…! Esta espiral de sentimentos teria tantas outras justificações, claro, mas como em todas as vezes que nos deixamos cair em caminhos que só nos estragam a nós, nunca damos por eles, nunca podemos apontar o dedo a uma causa.

O Duarte, por sua vez, tinha um grande dom: exprimia-se muito bem, tinha um grande poder de argumentação. Tanto pior, em todos os seus preconceitos e opiniões, sempre conseguia encontrar justificações completamente infalíveis para caberem dentro das suas teorias. Quando algo lhe parecia estranho, ele não ponderava mudar a sua percepção daquela realidade em causa, os outros é que estavam todos errados. Por causa deste dom, o cérebro acabava por moldar a realidade da forma que mais lhe convinha, de forma que tudo o que não fizesse sentido era como que apagado do mundo com que tinha que lidar…

Nesse dia em que, mais uma vez, se dedicava a “curtir a depressão”, teve uma surpresa. Estava no café do costume, e tinha acabado de pagar, preparando-se para sair. Deu de caras com um grupo de amigas, todas pertenciam ao coro da Academia de música. Eram cinco, e a todas as conhecia, melhor ou pior, mas havia ali uma cara nova… e como colega de turma de duas delas, vizinho de uma outra, voltou a sentar-se à mesa, naquele café.

Chamava-se Catarina, olhos e cabelo castanhos, riso despreocupado. Na verdade não tinha grandes características físicas dignas de uma grande história de amor, e no rosto não tinha o sorriso de princesa que nos filmes sempre é obrigatório. Mas nesse mesmo sorriso, nessa mesma expressão, o Duarte viu uma necessidade enorme de estar com ela mais uma vez. Não foi difícil, a empatia dos dois era bem visível, e não demoraram a ver tudo o que tinham em comum: a música acima de tudo, o gosto por ler, por escrever, por ensinar. O Duarte não se lembrava de alguma vez ter sentido por alguém uma empatia assim, mas era um facto que, pouco tempo depois, ambos sabiam da vida um do outro quase tão bem como conheciam a sua própria vida.

“Catarina,
Minha querida, luz que tantas vezes precisa de brilhar para eu poder sorrir, olá!
Estou a escrever esta carta, não porque aconteceu alguma coisa de especial, ou de grave. Não! Simplesmente te escrevo, porque me apetece partilhar contigo certas coisas, que são tão importantes que não se podem perder numa mensagem, e infelizmente não tenho a coragem de dizer… Foste a coisa mais especial que me aconteceu nestes últimos tempos, sabes? Sim, sei que sabes, sabes que tens sido uma grande porta na minha vida, tens-me mostrado coisas tão bonitas! Tenho necessidade de estar contigo, de viver os meus dias contigo presente, porque fazes parte da minha felicidade. Sim, fazes parte da minha felicidade, e de mim! Tenho tanta coisa a agradecer… tanta coisa ainda para te mostrar de mim… mas tu… tu soubeste fazer-me levantar a cabeça… e vê-se muito melhor! Quando olhamos o mundo com as costas direitas e o queixo levantado, conseguimos ver muito mais longe… e é tão bom, minha querida… tão bom, que só me faz pensar que estar a escrever é uma perda de tempo, que as palavras não servem de nada, depois de tudo o que o coração é capaz… Sim, sinto-me infinitamente bem, sinto-me infinitamente livre e infinitamente sereno, por poder experimentar ser tão importante para ti. Eu adoro-te, miúda. Não tenho mais nada a dizer que valha mais do que um abraço.

Duarte.”
 
por David a 10:47 | Permalink | 0 comentário(s)
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Prólogo
Numa aldeia, perto do lugar onde o Norte e o Sul se encontram, alheada de um mundo ao contrário com Leis que o castram de sentido de felicidade a cada dia que passa, uma criança, com olhos de um azul infinito a lembrar o ponto onde o mar e o céu se encontram, toca a água do tanque que se encontra à sua frente. Está gelada. Não importa, aquela sensação até é agradável: faz-lhe lembrar o tempo em que era também uma criança num corpo de criança. Sim, esta é uma criança grande, a quem a vida se encarregou de traçar marcas no rosto, mas que, incrivelmente, preserva um sorriso de criança que de uma maneira tão ternurenta transforma o "dia normal" de cada um num dia que vale a pena ser vivido...

É um dia normal, numa fase anormal da sua vida. Esta criança grande tem vindo a experimentar o mundo que luta para a tornar adulta, no pior sentido da palavra. Adulta, sem acreditar em magia, sem acreditar na beleza dos dias e dos rostos que os preenchem, sem acreditar no melhor de si...

Subitamente, ao passar por aquele tanque, na casa daquele familiar, pára. O tanque nunca fora especial para si. Na verdade, nem sequer gostava muito dele, porque a água que ali se encontrava estava sempre fria. Passou por ele vezes sem conta. Tantas, que se tinha habituado a nem se dar conta dele. Neste dia, no entanto, parou. Nesta sua fase da vida em que andava difícil lembrar-se da sensação de ser criança, lembrou-se da última vez em que realmente ali tinha estado, parada em frente a ele. Era criança, vinha agora à mente com uma certeza inigualável. Sabia-o, porque a única preocupação tinha sido exactamente o facto de a água estar gelada. Nada mais interessava.

Deixou-se estar. Pela água, através dos dedos entrava uma sensação de felicidade que envolvia o coração num calor que o aconchegava. Parecia tão incoerente, pensava a criança grande, mas realmente, lembrava-se agora das palavras de um amigo, "quando se está ao nível do coração, tudo faz um sentido que as palavras nunca foram capazes de expressar"... A água gelada parecia refrescar, agora que se sentia assim tão bem consigo mesmo, e pela primeira vez com tanta vontade, juntou as mãos a formar uma concha debaixo de água, e num movimento brusco mas infinitamente libertador, molha a cara com a única preocupação de sentir aquela frescura escorrer pela face...
 
por David a 06:40 | Permalink | 1 comentário(s)