quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Capítulo 3
O Duarte encontrava-se de novo nas escadas do salão paroquial. Tinha acabado de deixar a Catarina, e deitara-se no patamar superior das escadas, perto da porta. Fechou os olhos. A realidade não seria o que a Catarina pensara, com certeza. Mas, pensou, tinha-se sentido tão bem… e a verdade é que o adjectivo que a Catarina usara – a Liberdade – fizera todo o sentido, tinha caído que nem uma luva em toda a situação. Via agora que por causa dessa Beatriz tinha esquecido imediatamente o Fernando, até ter voltado a falar nele quando contou tudo à Catarina. E sabia que quando se punha a lembrar dele, era um ciclo vicioso. Mas porque é que seria tão difícil?

Abriu os olhos.
- Olá! – A voz já era inconfundível, e a silhueta daquela menina morena fazia-se contornar na claridade que agora o Sol dispunha ao mundo.
- Beatriz! – O Duarte tinha já um turbilhão de perguntas, mas ela não o deixou.
- Como sabes o meu nome?
- Ouvi aquilo que parecia a tua mãe a chamar-te…
- Ah, a mamã. Foi ela, sim. Ela está sempre comigo – Dizia sorrindo.
- E agora por aqui, pelos vistos…
- Hmm-hmm… - respondia sem grande interesse, a Beatriz. Parecia ocupada a ver uma borboleta que por ali passava, e sorria-lhe.
- Tenho montes de perguntas, mas não sei se as vais compreender… - Começou o Duarte, a medo.
Mas a Bia não parecia preocupada em responder às perguntas do Duarte:
- As borboletas são bonitas. Olha, esta é cor-de-laranja. Já viste borboletas hoje?
- Hmm não… Era suposto? – pergunta o Duarte, confuso com a pergunta.
- Não, mas são bonitas, as borboletas.
O Duarte já não estava a gostar muito da conversa, não achava que ver borboletas fosse importante, quando tinha tantas perguntas a fazer. E estava atónito, parecia loucura, uma miúda, que parecia uma princesa, a quem tanto precisava de perguntar coisas que não deixara pessoas da sua idade sequer pôr em causa.
- Quantos anos tens? – Pergunta, tentando recomeçar a conversa.
- Sou uma criança pequenina… - respondeu, ainda a olhar para a borboleta.
- Vais responder-me às minhas perguntas? – pergunta o Duarte começando a ficar sem paciência – Ou vais continuar a olhar para a borboleta?
A Bia, sem nunca desviar o olhar da borboleta, abre o seu sorriso, deita-se ao lado do Duarte, de barriga para baixo, e diz:
- Os adultos são muito complicados, e nós temos de estar sempre a explicar as coisas importantes.
- Achas que sou um adulto? – pergunta o Duarte, sentindo-se velho.
- Estás a ser complicado…
- Porquê?
- Porque não estás a olhar para as borboletas…
- Mas afinal o que têm as borboletas?
- São bonitas.
O Duarte começava a achar a Beatriz muito especial. Tudo nela era verdadeiro. Apesar de se sentir tão perdido naquele mundo, gostava muito de a ouvir preocupar-se com nada mais do que aquilo que ali estava, aquela borboleta esvoaçando para mostrar ao mundo as suas asas cor-de-laranja. A Bia continuava assim, a sorrir enquanto balançava as pernas alternadamente, e via a borboleta. Enquanto isso, o Duarte pensava em tudo o que aquilo significaria, em tudo o que estava a sentir. Sentia-se livre, por muito que ainda não compreendesse aquele mundinho da Bia, onde ela parecia sentir-se tão feliz. Talvez nunca tivesse mesmo compreendido a palavra Liberdade nestas últimas vezes que a usara. Sabia toda essa teoria, mas tinha esquecido de como a sentir era tão bom.
Tomou, então uma decisão:
- Bia, queres que apanhe essa borboleta para ti?
Ela olhou-o, sem perceber.
- Para quê? – Perguntou.
- Para ficares com ela. – respondeu calmamente o Duarte.
- Mas se eu ficar com ela, como é que as outras pessoas vão poder vê-la? Ela é tão bonita…
- Está bem, mas não a queres?
- Quero que as outras pessoas possam ver que bonita é…
O Duarte não compreendia todo o sentimento de partilha, não de conquista, da Beatriz. Mas os adultos são assim. Sempre preferiram ter as coisas, possui-las para poderem ser donos delas. Só devemos ter as coisas enquanto nos podermos libertar delas. Mas os adultos não sabem fazer isto, vivem presos por tudo o que mais desejas possuir, e não partilhar, quando a partilha é que os faz realmente felizes. E o Duarte tinha-se esquecido de partilhar o seu mundo. Naquele momento, partilhava aquela borboleta, aquele mundo que deixara de ser só da Bia, que o partilhara, e passara a ser dele também. Poderia também mostrá-lo a outros?
- Duarte – continuou a Bia, agora visivelmente querendo chegar mais além –, tu compreendes-me?
- É tudo de mais para mim, Bia… e ainda nem sequer sei como te estou a dizer isto, nem porquê, mas olha, desde que vieste contra mim que me fizeste ver coisas que eu não teria visto sem ti, sabes? Mostraste-me coisas que eu outrora consegui ver, e há já muito que me esqueci… e agora parece tarde, percebes? Parece tão difícil poder voltar a sentir, voltar a ver como tens mostrado que vês…
- Eu não vejo mais do que “coisas”… Não vejo mais do que borboletas…
- E isso é ver tanto… que nem imaginas como faz agora sentido para mim… – disse serenamente o Duarte.
- Sabes? – pergunta a Bia, abrindo o seu enorme sorriso – Eu gosto de ti. Não és parecido com os outros adultos.
- Não? Mas ainda agora disseste que era…
- Mas não és – continua, numa gargalhada envergonhada – és diferente. Os adultos têm sempre coisas “importantes” para fazer, e nunca têm tempo para mim. Tu tens tempo. Se não me percebes, ao menos tens tempo, estás aqui. Não tens coisinhas importantes para fazer. Os adultos nunca têm tempo para nada.
- Fico contente…
- Ficas contente por quê? – perguntou a Beatriz.
- Por achares isso.
- Ah…
- Tanto entusiasmo… Que se passa?
- Preferia que brincasses comigo…
- Eu não sei brincar…
- Sabes sim, queres ver? – olha em volta por uns momentos – Pega a minha mão.
Desceram as escadas, e ela levou-o para a parte debaixo do parapeito de uma das extremidades do parque, que teria, talvez, um metro e meio de altura. Deu a volta, voltou a subir pela rampa e apareceu na parte de cima do parapeito. Foi tudo muito rápido: O Duarte não teve tempo de se preocupar com nada. Quando olhou para ela, a Beatriz tinha-se atirado com os braços em direcção ao seu pescoço. Se não a agarrasse, ela cairia redonda no chão. Não analisou técnicas, não pensou que não sabia, nem que não tinha jeito para crianças. Segurou-a, e pronto. Quando sentiu os seus bracinhos à volta do seu pescoço, sorriu. E serenou. Não tardou a que ela se separou do Duarte, também visivelmente a sorrir, e pôs-se a fugir dele, enquanto ele corria gora para a apanhar, e agarra-la, abraça-la mais ama vez. Brincaram durante um tempo que o Duarte já não sabia possível de se viver. Não foi muito tempo, foi o suficiente para rasgar o coração ao meio. Rasgar, a única maneira de o abrir sem o risco de ele se voltar a fechar, Rasgar, escancarar as velhas cascas que cobriam a superfície e prendiam tudo o que lá havia dentro, deixando por vezes escapar pequenas lascas de sentimentos para enganar a “razão”. Foi uma explosão que veio de dentro. Quando as explosões vêm de fora tantas vezes só nos levam lascas das crostas que nos cobrem. Mas quando vêm de dentro… aí sim, quando as explosões vêm de dentro, levam tudo! E ainda bem, este Amor tão preso nunca se deu bem assim… e o Amor é assim, vence sempre. E quando chega a estes cúmulos, normalmente é com estas explosões drásticas que o coração vence.

- Vou para ao pé da minha mamã – disse, de súbito, a Beatriz.
- Já?
- Sim. Voltas a ver-me?
- Eu não tenho uma hora para voltar – Respondeu o Duarte. Queria tanto voltar a vê-la que não imaginava outra situação possível –, porque ando sempre por aqui…
Não tinha chegado ainda à conclusão que ver a Beatriz dependia dele, não dela…
 
por David a 06:22 | Permalink |


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